de fato após decretado a minha morte, primeiro eu fui enterrada em um caixão feio improvisado de madeira velha mofada, soterrada em terra vermelha molhada e pesada. nada indicava que havia se quer uma fresta de vida que entrasse ou soprasse por qualquer poro de caminho criado pelas minhocas que já trabalhavam em meu corpo em putrefação.
dito e entendido aqui o quanto não havia pulsão alguma de vida, onde dos precipícios em algum abril próximo era eu quem me jogava. cada ano um que partia, e era eu, era eu por alguns anos, enterrada, provavelmente a decomposição estava em processo avançado até que, longe de ser repentino, os lençóis gelados que me cobriam, os braços invisíveis que me aconchegavam, o travesseiro confortável que eu inventei, e os pés invencíveis que ainda me acompanhavam, decidiu-se então, não por mero ato de decidir mas de insistir mesmo que feia e putreficada e provavelmente macabra, decidiu-se sair, sair do cemitério que jazia, parou de chamar desalento de lar, saltou de volta do precipício que havia se atirado. e então com os olhos que não sabia que ainda enxergavam, passou a sentir o vento no rosto como em três d, passou a queimar a pele com o sol que irradia o verão chuvoso, passou a molhar os pés nas enxurradas fétidas da cidade grande, passou a ver cores nos edifícios e nas briófitas, passou a ser surda quando precisava e raivosa quando apetecia. passou a ser a marceneira de seu próprio caixão, e passou a aprender a amar a arte que sabe fazer com as mãos. e sobre a terra vermelha molhada e fria não teve ao que regressar, pelo menos não ainda.